A Rockstar não é mais a mesma: para o bem ou para o mal
Já há alguns anos, um lançamento da Rockstar Games é um evento. Não só pelas imensas campanhas de marketing, ou qualidade dos jogos, ou os seguidos recordes de vendas,...
Já há alguns anos, um lançamento da Rockstar Games é um evento. Não só pelas imensas campanhas de marketing, ou qualidade dos jogos, ou os seguidos recordes de vendas, mas pelo fato de que esses lançamentos são cada vez mais raros.
Na geração passada (ou retrasada, já que o PS5 e os Xbox Series X/S já estão entre nós), a Rockstar lançou GTA IV, o primeiro Red Dead Redemption, Max Payne 3, L.A Noire e, claro, GTA V – esse último sendo a provável razão de, mais de sete anos depois, a Rockstar só ter lançado apenas um outro jogo: Red Dead Redemption 2.
A questão é: a Rockstar de hoje não é mais a mesma de até alguns anos atrás, e vamos explorar aqui as razões disso, juntamente com algumas preocupações sobre o futuro.
GTA V e GTA Online: um hit inesgotável
GTA V foi lançado em setembro de 2013, sendo relançado para PS4, Xbox One e PC e com uma nova remasterização anunciada para a nova geração de consoles. O game aparece no top 10 de vendas quase todos os meses desde o lançamento, tendo em 2018, quando já havia vendido mais 90 milhões de cópias, se tornado o produto de mídia mais lucrativo de todos os tempos.
Em 2021, o jogo já ultrapassou a marca de 120 milhões de cópias vendidas. Estima-se que a Rockstar lucre mais de 500 milhões de dólares anualmente apenas com a venda de Shark Cards (dinheiro virtual do jogo comprado com dinheiro real) em GTA Online, o que pode explicar a falta de pressa da gigante em lançar um novo título. Esse sucesso é algo que nem mesmo os cabeças do estúdio esperavam.
O trio formado por Leslie Benzies e os irmão Dan e Sam Houser é responsável por tornar GTA no que a franquia é hoje. Juntos fizeram milhões de dólares, num ambiente de trabalho que não deixava muito a desejar em relação aos games que lhe deram fama: festas, bebedeiras e idas frequentes a clubes de strip.
Com foco em campanhas single player até o lançamento de GTA V, Benzies afirma que os irmãos Houser não eram muito fãs da ideia de um componente online e pouco se envolveram em seu desenvolvimento. Através do sucesso imenso de GTA Online, especialmente após a atualização dos Golpes em 2015, a Rockstar definitivamente mudou.
Com atualizações constantes, que eventualmente se tornaram mensais e permanecem assim até hoje, GTA Online – e somente Online – recebeu uma quantidade gigantesca de conteúdo que hoje faz a campanha parecer algo secundário. As primeiras atualizações de GTA V adicionaram conteúdo que contemplava ambas as modalidades, mas a campanha acabou deixada de lado após algum tempo. Mesmo uma DLC para a história, que já era padrão nos games da Rockstar, estava nos planos e simplesmente sumiu do mapa.
Com quase 10 anos, GTA V e seu modo online continuam um sucesso absurdo
GTA Online pode ser uma experiência divertida com amigos e eu mesmo tenho algumas centenas de horas gastas no modo (os Golpes online são minha parte favorita do game como um todo), mas é preocupante a influência que isso teve não só na forma como a Rockstar lida com games, tratando o que ela sempre fez bem como algo não tão importante, mas como na indústria como um todo.
O “todo conteúdo é gratuito”, mas que na verdade requer horas de grind para obter quase qualquer coisa, abriu espaço para microtransações cada vez mais agressivas nos games AAA, tornando o processo de aquisição de coisas in game propositalmente tedioso para estimular o jogador a gastar mais no que já custa um absurdo, especialmente se tratarmos da realidade brasileira.
Em entrevista para a GC em dezembro de 2020, onde falava do lançamento do Golpe de Cayo Perico, a maior atualização de GTA Online até então, o diretor de design Tarek Hamad fala em como a Rockstar procurou contemplar tanto jogadores solo como aqueles que querem jogar em equipe, dando várias formas de infiltrar e roubar a ilha caribenha, primeiro acréscimo ao mapa de GTA V desde o seu lançamento.
Perguntado se a Rockstar pretende contemplar aqueles que procuram uma narrativa single player no futuro (Red Dead Redemption 2 ainda teve uma aclamada campanha de mais de 80 horas mesmo após o sucesso esmagador de GTA Online), respondeu com um “Com certeza”. Se isso significa uma campanha offline ainda no horizonte da franquia ou mais mesclas de componentes solo e coop online, a entrevista não deixa claro.
Briga de peixe grande e despedidas
Após anos do que parecia uma parceria de irmandade, Leslie Benzies deixou a Rockstar em 2016 ao voltar de seis meses sabáticos e descobrir, segundo o próprio, que os Houser haviam bloqueado seu acesso ao e-mail corporativo e redirecionado seus royalties em cima dos lucros da empresa para si mesmos, cortando em definitivo seus laços com a Rockstar.
No mesmo ano, Benzies processou a Rockstar em 150 milhões de dólares, num processo onde várias farpas foram lançadas em direção aos irmãos, citando que os sucessos da franquia GTA e do primeiro Red Dead Redemption só foram possíveis graças a ele e lançando denúncias sobre comportamento inapropriado, como vestir funcionárias em trajes e fazê-las ficarem em posições sensuais. A defesa da empresa afirmava que o desligamento de Benzies foi feito de forma limpa e após suposta baixa performance, negando as acusações.
Em 2018, a justiça americana declarou o pedido de Benzies, mesmo tendo direito a royalties, incabível. O processo acabou em 2019, com resultados que não foram divulgados ao público. Dan Houser, creditado como o principal responsável pelas histórias e personagens do estúdio, acabou por também deixar a Rockstar em março de 2020, curiosamente também após uma folga prolongada.
Dan Houser (esq) e Leslie Benzies
As razões não foram divulgadas, mas jornalistas e analistas que acompanhavam a vida dos fundadores da Rockstar (que não são muito de aparecer em público) relatam que Dan parecia cansado. Ainda no mesmo ano, foi somado às baixas Lazlow Jones, outro veterano no estúdio que atuou como escritor, produtor e DJ na franquia GTA e que também tem créditos em Bully, Max Payne, Midnight Club e Red Dead Redemption. Jones afirmou que sua decisão de sair foi devido ao câncer terminal de sua irmã.
Vale lembrar que a Rockstar possui mais de 2000 pessoas trabalhando em seus jogos, divididas em diferentes estúdios, e que acabam ficando apagadas frente a quem fica no início dos créditos, então talento é algo que a empresa ainda deve ter de sobra. Mas má direção é algo que pode ter consequências desastrosas (como o caso recente de Cyberpunk 2077), resta saber o quanto a falta de três dos nomes responsáveis pelos sucessos da empresa afetará na qualidade do que está por vir.
Abuso e Crunch
Se você acompanhou notícias sobre games nos últimos anos, muito provavelmente já deve ter ouvido que, em diferentes estúdios de games, desenvolvedores passavam por jornadas exaustivas de trabalho, mais como conhecidas como crunch. Durante a divulgação de Red Dead Redemption 2, Dan Houser revelou que ele e parte da equipe estavam trabalhando até 100 horas por semana para terminar o jogo.
A notícia ganhou manchetes e trouxe a tona um problema que trabalhadores da indústria enfrentam há anos, com conseqüências severas em sua saúde física e mental. Como diz David Kushner, autor do livro Jacked: The Outlaw Story of Grand Theft Auto, “essa é uma indústria que sempre foi construída em cima dessa ideia de período de crunch”.
Em 2008, durante o desenvolvimento de GTA IV, funcionários da Rockstar processaram a empresa por horas extras não remuneradas. Em 2009, a Take-Two, dona da Rockstar, entrou em acordo com 100 pessoas e pagou um total de 2.75 milhões de dólares, negando as acusações.
Segundo alguns, a cultura de crunch instaurada na Rockstar por Dan Houser, que cobrava por excelência e implementava mudanças nos meses finais de produção de seus jogos, requerendo horas extras obrigatórias, pode ter desgastado o próprio. Não é incomum ouvir histórias de pessoas na indústria que largam seus antigos trabalhos por não aguentarem a carga excessiva de trabalho ao longo de anos, como foi o caso de Bruce Straley, que dirigiu o primeiro The Last Of Us e Uncharted 4 ao lado de Neil Druckman.
Escritório da Rockstar North no desenvolvimento de GTA V
Straley deixou a Naughty Dog após a conclusão do capítulo final das aventuras de Nathan Drake por, segundo o próprio, ter sentido que o projeto foi mais uma obrigação para com a equipe e a empresa do que algo feito por paixão, tendo de ser concluído num período de apenas dois anos que levou a um crunch brutal. “Ah meu Deus, é hora de dar um tempo. É hora de me afastar”, disse Straley em podcast da Kotaku em 2018.
Quase um ano após o lançamento de Red Dead Rdemption 2, quando Houser já havia saído da empresa, a executiva Jennifer Kolbe enviou um e-mail para os funcionários da Rockstar com uma lista de iniciativas para melhorar a cultura do ambiente de trabalho. O documento falava em horários mais flexíveis, treinamentos, pesquisas de opinião, atualizações constantes sobre o progresso do desenvolvimento de jogos e melhorias gerais na comunicação.
Em matéria publicada em abril de 2020, 15 pessoas, entre funcionários e ex-funcionários, entrevistadas pelo jornalista Jason Schreier (talvez o principal responsável por divulgar o problema do crunch na indústria dos games) relataram que a sensação geral era de que as coisas estavam realmente melhorando na Rockstar.
Colin Bundschu (esq) foi responsável pela acusação contra Jeronimo Barrera (dir).
Além do crunch, uma alegação de assédio sexual contra um dos maiores executivos da empresa, Jeronimo Barrera (que negou a acusação) e relatos de uma cultura tóxica levaram a mudanças na liderança de setores da empresa. Durante o ano sábatico de Dan Houser (que terminou com sua saída da empresa), a Rockstar trocou as pessoas à frente dos estúdios de San Diego, Califórnia e Lincoln, no Reino Unido, além de demitir diretores e gerentes acusados de perpetuar problemas culturais. Reuniões sobre conduta e assédio sexual foram realizadas, além da contratação de uma empresa de coaching para o treinamento da gerência.
Ao que tudo indica, um novo GTA se encontra nos estágios iniciais de desenvolvimento. Se as melhorias nas condições da equipe serão mantidas, só o tempo dirá, já que os problemas de crunch costumavam se intensificar próximo ao lançamento de um novo game da empresa.
Parada no tempo
Mesmo antes das baixas na liderança da Rockstar, você talvez tenha ouvido alguém reclamar que, apesar dos gráficos incríveis e histórias envolventes, os jogos da Rockstar tem caído na mesmice, mesmo com anos de diferença entre um lançamento e outro. Este texto ficaria muito mais longo se tivesse que entrar em detalhes quanto a isso, então fica aqui a dica do ótimo vídeo Rockstar’s Game Design is Outdated, do canal americano NakeyJakey (com opção de legendas em português). Em quase 40 minutos de duração, Jakey detalha os problemas aparentes no design de Red Dead Redemption 2, em especial a distinção entre o mundo aberto mais livre e as missões cheias de restrições desnecessárias.
Se por um lado a linearidade pode levar a momentos marcantes cuidadosamente montados (todo mundo que jogou o game deve lembrar de certos momentos que envolvem álcool ou música), os vários fail states de cada missão, como induzir uma tela de fracasso, sem aviso prévio, ao ficar um pouco distante de um parceiro NPC, são frustrações comuns e bizarras em tempos em que até jogos mais lineares, como o exemplo mais recente de The Last of Us Parte II, procuram dar maior liberdade ao jogador na hora de escolher como chegar do ponto A ao ponto B, mesmo sem modificar a história contada.
Red Dead Redemption 2, a despedida da Era de Ouro da Rockstar?
No caso de Red Dead, um jogo com um mapa gigantesco e exploração não linear, a falta de liberdade em diversas situações pesa ainda mais. Tais problemas podiam ser percebidos já em GTA V, lançado numa época em que outros games do tipo já começavam a recompensar a criatividade e curiosidade do jogador, como o divertidíssimo Far Cry 3, lançado no final de 2012 e que definiu a forma como a Ubisoft faz seus jogos, influenciando até mesmo franquias gigantes como Metal Gear Solid e The Legend of Zelda.
A sensação é como se a Rockstar fosse uma cozinha com todos os melhores equipamentos, ingredientes e cheffs do mundo, mas que prefere usar todo o seu potencial para fazer o mesmo arroz com feijão de sempre, talvez acrescentando um pouco de tempero extra.
Agora que a cultura da gigante dos games vem passando por mudanças, com a ausência de cabeças que ditavam os rumos de cada projeto, resta esperar pra ver o que vem aí, seja um novo épico single player, uma nova experiência online para passar tempo com os amigos, ou um misto dos dois. Os próximos anos nos dirão o quanto figuras como Dan Houser e Leslie Benzies farão falta. Mas uma coisa é certa: a Rockstar de hoje não é a mesma de até dois anos atrás – para o bem ou para o mal.