Como o público no Brasil passou a ir ao cinema somente para assistir blockbusters

A proporção do número total de ingressos que ia somente para um seleto grupo de blockbusters (as 10 maiores bilheterias do ano) só cresceu a partir de 2018.

Como o público no Brasil passou a ir ao cinema somente para assistir blockbusters

A proporção do número total de ingressos que ia somente para um seleto grupo de blockbusters (as 10 maiores bilheterias do ano) só cresceu a partir de 2018.

Como o público no Brasil passou a ir ao cinema somente para assistir blockbusters
BLOCKBUSTER DOMINAM O CIRCUITO
Imagem: Reprodução | Divulgação
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Na primeira parte desta matéria, mostramos como o público nacional passou a dar uma chance a filmes diferentes, seja de escala menor que uma aventura multiversal da Marvel (como a comédia romântica Todos Menos Você) e longas nacionais (como Minha Irmã e Eu e Os Farofeiros 2), afora somente os grandes arrasa-quarteirão estrangeiros. Mas para entender como chegamos nesta situação, é preciso fazer um histórico do comportamento do cinéfilo brasileiro nos últimos 30 anos.




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Os anos 1990 foram um período de transição para a indústria exibidora brasileira. Após décadas dos famosos e extremamente populares cinemas de rua, houve uma transição para os multiplex vistos nos shopping center de hoje em dia. Infelizmente, por conta disso ir ao cinema na época era proibitivamente caro para a maioria da população.

O volume total de ingressos vendidos caiu bruscamente de 95 milhões em 1990 e 1991 para menos de 35 milhões em 1992. Pelos anos seguintes, a venda total de entradas para o cinema se manteve na casa dos 40 milhões, até que, em 1998, houve um crescimento para 66 milhões, em grande parte graças a somente um filme: Titanic, que foi assistido nos cinemas por nada menos que 16 milhões de brasileiros ao longo de todo aquele ano.


A tendência de crescimento, felizmente, não diminuiu nos anos seguintes, mesmo que eles não contassem com um fenômeno do tamanho de Titanic. Em 2003, chegou-se pela primeira vez aos 100 milhões de ingressos, um valor não visto desde 1989. Já em 2004 (ano de megahits entre a audiência nacional, como Homem-Aranha 2, A Paixão de Cristo e Shrek 2) foram nada menos que 117 milhões. Foi o ano mais movimentado para as salas de cinema no Brasil desde 1986.

Naquela época, eram lançados cerca de 200 a 300 filmes por mês. A porcentagem dos ingressos vendidos ao longo de todo o ano que ia para os 10 maiores do ano ficava entre 30% e 40%, com os outros 60 a 70% restantes indo para os demais.


Apesar de um período de 4 anos de queda entre 2005 e 2008, nos quais a venda total de ingressos ficou abaixo de 100 milhões, a partir de 2009 as bilheterias retomaram o ritmo de crescimento. Foram sete anos de crescimento contínuo na venda anual de ingressos, saindo de 89 milhões em 2008 para 113 milhões em 2009 até chegar em 185 milhões em 2016.

Até então, o share das 10 maiores bilheterias do ano vinha se mantendo na casa dos 30%, com o restante dos longas respondendo por pouco mais de 60% dos ingressos vendidos. Em anos em que havia um ou mais blockbusters anormalmente fortes (como 2010, ano de Tropa de Elite 2, que vendeu mais de 11 milhões de entradas, ou 2012, o ano de Os Vingadores e A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2, ambos com mais de 10 milhões de ingressos cada um) a porcentagem dos dez mais podia chegar aos 40%, mas não ia muito além disso.


Assim, até 2016 crescia o volume de ingressos total, tanto dos 10 mais quanto dos restantes. Entretanto, lentamente um movimento começava a ganhar força: o ritmo de crescimento do total dos dez mais crescia mais rapidamente que o dos outros filmes. Os de fora do top 10 ainda vendiam mais de 100 milhões de ingressos por ano, mas os maiores hits do ano chegaram ao recorde histórico de 62 milhões em 2015 (ano de Vingadores: Era de Ultron e Velozes & Furiosos 7, com em torno de 10 milhões cada) e depois de 70 milhões em 2016 (ano de Os Dez Mandamentos: O Filme, Capitão América: Guerra Civil e Batman vs Superman: A Origem da Justiça).

Em 2017, ocorreu o que já era previsível: o volume dos 10 mais cresceu para 72 milhões enquanto o dos demais filmes caiu de 115 em 2016 para 110 milhões. Tudo isso enquanto a quantidade geral de ingressos passou de 185 para 183 milhões.


Mas foi em 2018 e 2019 que a tendência de concentração atingiu seu clímax. Naqueles anos, enquanto o número total de ingressos caiu em relação ao visto em 2016 e 2017 (foram 164 milhões em 2018 e 177 milhões em 2019), o volume de ingressos vendidos pelos dez maiores filmes do ano se mantinha em constante crescimento: passou para 75 milhões em 2018 e nada menos que 91 milhões em 2019.

Por outro lado, enquanto os maiores blockbusters ficavam cada vez mais populares, os demais sofriam: de 110 milhões em 2017 caíram para 89 milhões em 2018 e 87 milhões em 2019.

Com isso, o share do top 10, que vinha se mantendo há anos na casa dos 30%, chegou a 46% em 2018 e 51% em 2019. Naquele ano, pela primeira vez a proporção do total de ingressos do ano que ia somente para os 10 maiores filmes finalmente ficou acima da metade, a primeira vez que isso ocorria desde que há dados disponíveis sobre a bilheteria brasileira.

Também pudera: o top 10 de 2019 incluiu monstros de bilheteria, como o atual maior público e arrecadação da história do Brasil Vingadores: Ultimato (19,7 milhões de ingressos/R$ 339 milhões de arrecadação), o remake live-action de O Rei Leão (16,3 milhões/R$ 266 milhões) e os bem sucedidos Capitã Marvel (9,04 milhões/R$ 146 milhões) e Toy Story 4 (7,99 milhões/R$ 125 milhões) – e isso só da Disney, que estava imparável naquele ano. Mas a Warner também contribuiu com o badaladíssimo thriller Coringa (9,9 milhões de entradas/R$ 159 milhões).

Não é coincidência que tudo isso ocorreu num momento em que os serviços de streaming ficavam cada vez mais populares entre o público nacional. Os números comprovam aquilo que já se sabia a anos: a audiência passou a ir ao cinema somente para os grandes eventos, como as aventuras dos Vingadores, remakes e sequências de clássicos animados do passado, filmes ligados a franquias famosas cuja existência já dura décadas (Jurassic World, Velozes & Furiosos, Star Wars, etc).

Para filmes “normais”, de menor escala, que não configuram blockbusters, como comédias, romances, longas de ação que não envolvam super-heróis, ou quase qualquer ideia original que não se baseia numa marca famosa, o público decidiu que não valia a pena pagar caro num ingresso de cinema, optando por vê-los em casa.

Enquanto a venda total de ingressos atingiu um pico em 2016 que nunca mais conseguiu alcançar, as entradas de cinema passaram a ser concentradas em um punhado de hits hollywoodianos.

Em 2020, a pandemia só piorou esta tendência. Mesmo considerando aquele como um ano atípico, a concentração de público impressiona: 40 milhões de ingressos vendidos no ano todo, dos quais 31 milhões (77%) foram para os dez mais (quase todos lançados antes do fechamento das salas em março) e somente 9 milhões (23%) para o restante. Claro, foram somente 185 filmes em cartaz ao longo daquele ano, uma queda brutal em relação aos 464 de 2019.

2021 e 2022 foram anos de recuperação para a indústria exibidora. O volume de ingressos saiu das profundezas em que havia caído em 2020 rumo a totais um pouco menos pavorosos. No entanto, a concentração de público dos dez mais, se diminuiu em relação ao extremo de 2020, ainda seguia forte: 65% em 2021 e 60% em 2022.

O campeão de bilheteria de 2021, o primeiro grande arrasa-quarteirão pós-pandêmico, foi a aventura da Marvel Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. Tendo estreado em dezembro daquele ano, o longa finalizaria com R$ 324 milhões e quase 18 milhões de entradas. Ele perde apenas para outro colega de Marvel, Ultimato, no ranking das maiores bilheterias da história do Brasil. Desse total, Homem-Aranha havia vendido 11,9 milhões de ingressos até o dia 31 de dezembro de 2021.

Isso significa que 23% de todas as entradas para o cinema em 2021 foram somente para este único filme: Sem Volta para Casa. Claro, a pandemia dominou boa parte daquele ano e prejudicou o desempenho de diversos outros concorrentes. Mas, mesmo em 2019, 11% de todos os ingressos daquele ano foram vendidos somente para Ultimato.

Como você viu em nosso artigo anterior, até 31 de maio de 2023 havia grande concentração de público em torno dos 10 mais. Entretanto, apesar do fenômeno Barbenheimer em julho (somente Barbie vendeu quase 11 milhões de ingressos, sua “cara-metade” Oppenheimer ficou com 3,03 milhões), o segundo semestre de 2023 foi, para dizer o mínimo, quase vazio de grandes blockbusters.

Entre a estreia da comédia cor de rosa de Greta Gerwig e Aquaman 2: O Reino Perdido em dezembro, simplesmente não houve um único filme capaz de vender mais do que 3 milhões de ingressos. Oppenheimer e A Freira 2 fizeram pouco mais do que isso, já Besouro Azul, O Som da Liberdade, Five Nights at Freddy’s, Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes e Wonka ficaram na casa dos 2 milhões.

Muitos dos principais candidatos a blockbuster do ano, como Missão: Impossível: Acerto de Contas – Parte Um, The Flash, Shazam! Fúria dos Deuses, As Marvels, Transformers: O Despertar das Feras, Indiana Jones e a Relíquia do Destino, Megatubarão 2 e os infantis Trolls 3: Juntos Novamente e Patrulha Canina: Um Filme Superpoderoso, obtiveram menos de 2 milhões de entradas.

Com tais longas se concentrando fora do top 10, ocorreu pela primeira vez algo não visto desde 2019: dos 118 milhões de ingressos vendidos em 2023, 63 milhões (53%) foram para os longas de fora dos dez mais, enquanto o top 10 respondeu por 55 milhões (47%).

O motivo para o segundo semestre de 2023 ter sido tão “fraco” em termos de grandes blockbusters foi devido à greve dos roteiristas e atores, que paralisou Hollywood por meses e levou ao adiamento de diversos filmes. Além disso, a insistência de Hollywood em continuar a apostar em franquias envelhecidas e incapazes de atrair o público no mesmo volume de antes, como o MCU, DC, Transformers e Indiana Jones.

Mas na virada de 2023 para 2024, alguns sinais de esperança começaram a aparecer: Minha Irmã e Eu mostrou que o público ainda tinha apetite para comédias nacionais. Todos Menos Você deu mostras de que a audiência, e principalmente os adolescentes e jovens, poderiam voltar a assistir comédias românticas (antes um celeiro de astros) no cinema e não somente no streaming.

Wish e Patos! mostraram que os pais ainda estavam dispostos a levar seus filhos para assistir animações originais, que não sejam sequências ou remakes de sucessos do passado. Seis meses antes, a performance quase milagrosa (embora auxiliada por um vazio na presença de opções para crianças) de Elementos também foi um sinal de esperança para produções familiares originais.

Ainda que as vendas de ingressos em 2024 não estivessem no mesmo volume de 2023, valeria a pena passar por um ano de sacrifício se isso no fim das contas servisse para acostumar a audiência a voltar a ver nos cinemas o tipo de filmes que antes eram a base de sustentação da indústria do cinema e torná-la menos dependente de umas poucas franquias de blockbuster.

Não é?

É o que você vai saber na terceira e última parte de nossa matéria especial!

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