[CRÍTICA] Coringa
Todd Phillips que me perdoe, mas se dependesse de sua filmografia, dificilmente a Warner Bros. contrataria o diretor da trilogia “Se Beber, Não Case!” para comandar um filme solo...
Compartilhe: Cassiano Meneses
Publicado em 3/10/2019 - 20h30
Todd Phillips que me perdoe, mas se dependesse de sua filmografia, dificilmente a Warner Bros. contrataria o diretor da trilogia “Se Beber, Não Case!” para comandar um filme solo do Coringa. Mas há 3 fatores cruciais que explicam o porquê do estúdio ter optado pelo cineasta:
- 1. Todd teve uma ideia simples, mas até então não pensada: fazer um estudo de personagem sobre o arquirrival do Batman com uma pegada mais dramática e com uma produção de baixo orçamento, fugindo de CGI e de telas verdes.
- 2. Todd e Bradley Cooper, ambos produtores de Coringa, estavam com crédito com a WB devido ao resultado bastante positivo de “Nasce Uma Estrela” (2018), que contou com a produção de Joint Effort, produtora dos dois parceiros.
- 3. E, por último, mas talvez mais importante motivo, a adesão de um ator do calibre do Joaquin Phoenix. A estrela que era um dos nomes de Hollywood mais cobiçados tanto pela Marvel quanto DC no cinema, finalmente aceitou fazer um longa baseado em quadrinhos.
Joaquin sempre foi relutante em entrar em projetos do gênero de super-heróis porque, segundo o próprio, não tinha encontrado um diretor que propusesse explorar mais afundo o aspecto humano de um personagem (e também porque ele não queria fazer um múltiplo contrato como ocorre nesses filmes). Mas essa história mudou ao ler o roteiro feito por Todd com Scott Silver (“O Vencedor”).
A trama que encantou Phoenix, acompanha Arthur Fleck (vivido pelo próprio), um palhaço de uma agência de talentos que almeja ser um comediante de stand-up e se apresentar no programa de seu ídolo Murray Franklin (Robert De Niro), ao mesmo tempo que precisa lidar com seus problemas neurológicos e com a cidade hostil onde vive. Tudo isso enquanto cuida sozinho da sua mãe debilitada, que sente uma estranha fixação por seu antigo patrão e agora candidato a prefeito Thomas Wayne (Brett Cullen).
De modo geral, é um roteiro até modesto, mas que dava a liberdade para Joaquin construir quase como quisesse o seu Coringa, inclusive o deixando improvisar ou sugerir alguma mudança na história. Nesse aspecto, o filme lembra outro trabalho do ator: “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” (2017). Nessa obra da diretora Lynne Ramsay, o roteiro também não é dos mais complexos, mas a direção é tão inteligente e a atuação do Joaquin é tão poderosa, que a história fica em segundo plano.
O desempenho de Joaquin Phoenix como Arthur Fleck e Coringa é digna de Oscar! Ele não precisa falar, Joaquin atua com os olhos, ombros ou até mesmo os pés. É daqueles atores que aparecem de tempos em tempos no cinema. A pureza que o seu Arthur tem me lembra de quando o ator era criança e atuava com o nome Leaf Phoenix. Já o ódio que ele exala quando comete seus primeiros crimes e, depois, quando se transforma em Coringa, é de uma natureza brutal que nem o Imperador Commodus (outro vilão famoso da carreira do ator) teria. São duas personalidades distintas, mas que se conversam e se misturam o tempo todo. O personagem não se limita a esses extremos, ele tem várias camadas, com momentos de humor, romance e tristeza.
O longa talvez não tenha grandes diálogos (apesar de ótimas frases de efeitos) ou uma trama mais rebuscada, contudo dá o básico para Joaquin brilhar e Todd Phillips ousar na direção e acertar artisticamente como nunca havia conseguido antes.
O filme tem como principal inspiração clássicos de Martin Scorsese. Se em “Cães de Guerra” (2016) Todd Phillips bebeu de “Os Bons Companheiros” (1990) e “O Lobo de Wall Street” (2013), em Coringa o cineasta se concentra em “O Rei da Comédia” (1983) e “Taxi Driver” (1976). O “Touro Indomável” (1980) também parece ter sido levemente lembrado na cena do camarim do Talk-Show. É verdade que Todd não tem a mesma genialidade de Scorsese, seu filme não é completo quanto as obras-primas estreladas por De Niro (que aqui vive o apresentador Murray), lhe falta um pouco de maturidade e de cuidado para dar dinamismo (uma melhor orientação ao editor poderia ter engradecido a obra) e padrão identitário mais bem definido às suas produções. Há uma cena bem problemática que contraria ao estilo realista do filme, por exemplo. Não entrarei em spoilers, mas digamos que um diretor de um programa de tv que é ao vivo deveria ter mais habilidades para saber lidar com situações imprevistas. Mas é de se admirar a forma como Todd conduz o personagem central da trama. Em termos de análise comportamental de carácter, não há do que se reclamar. E sua obra homenageia, mas não é uma cópia de seu novo mentor, Todd consegue tirar risos de cenas tão sombrias e perturbadoras que dá um misto de sensações que surpreende e encanta o público.
A direção de arte e o figurino recriam perfeitamente uma Nova York entre o fim dos anos 70 e o inicio dos 80. Porém, é a fotografia que transforma a cidade em Gotham, que parece que saltou dos gibis. Diferente da direção de fotografia da trilogia do “O Cavaleiro das Trevas” do Nolan onde a paleta meio azulada faz da cidade um lugar que parece com qualquer outra grande metrópole modernizada do mundo real e a clareza de luz, principalmente de dia, que lembra mais a de outro centro urbano da DC (Metrópoles), Lawrence Sher cria uma cidade com cores pasteis filtradas por nuvens cinzentas que mostram o clima poluído e úmido de Gotham.
A trilha sonora também merece ser destacada. Ela casa perfeitamente com o que o personagem do Arthur/Coringa está pensando ou vivendo. Se fosse um filme mudo como o de Charles Chaplin (reverenciado no longa), no qual os personagens não falam e a música exemplifica as palavras que não podem ser ditas (ouvidas), Coringa poderia ser completamente entendido e enaltecido justamente por conta do preciso trabalho da trilha com a linguagem corporal de Joaquin Phoenix.
Em Coringa, há também críticas pontuais a nossa sociedade em geral: como a política armamentista, o bullying e a falta de empatia das pessoas umas com as outras, a negligência do estado com problemas sérios sociais, como saúde mental e pobreza. Contraditoriamente, o filme critica pessoas como o próprio diretor Todd Phillips, que parece não ter noção da gravidade de certas piadas que ele sente falta de poder fazer, como ele demonstrou na entrevista a revista Vanity Fair, ao dizer que as comédias não funcionam mais hoje por conta do medo que se tem de ofender alguém e criticou o politicamente correto. Ele certamente seria uma vítima do Coringa de Joaquin Phoenix.
Mas em uma outra declaração ao site Comic Book, Todd Phillips é certeiro quando diz que não se pode ganhar da Marvel (pelo menos não jogando o jogo que ela joga), entretanto, a Warner pode fazer filmes que a Disney não pode fazer: proibidos para menores de idade, filmes solos ou universos fechados, histórias que abordam de perto temas indigestos etc. Ou seja, filmes em que o diretor tem carta livre e não precisa se limitar devido as várias imposições e interferências do estúdio.
Claro que há consequências de sair da zona de conforto das produções feitas para a família para filmes destinados ao público adulto. A grande polêmica que está tendo em torno do novo filme da DC é sobre até onde vai a influência de um filme que não economiza na violência para retratar um vilão de quadrinhos em pessoas e jovens que são ou podem vir a ser criminosos em série. Bem, há vários filmes que funcionaram como um gatilho para muitos jovens praticarem assassinatos e outras barbaridades, assim como há jogos de videogames, músicas ou livros (o assassino de John Lennon lia e se inspirou em “O Apanhador no Campo de Centeio”, que em nada tem a ver como violência, para matar o ex-Beatle). A arte tem o poder de instigar, provocar e influenciar, mas ela não pode ser censurada simplesmente por mostrar, por mais duro que possa ser, os horrores da nossa sociedade. E apesar do niilismo abundante existente no filme, a intenção de Coringa é criticar estruturas dominantes e a falta de compaixão das pessoas, e não de vangloriar ou justificar a barbárie.
E apesar das polêmicas, Coringa é um excelente estudo de personagem. Nuances de construção e evolução do personagem de Arthur para Coringa estão minuciosamente expostas. Talvez o longa tenha se prejudicado por focar demais no protagonista e não dar a mesma atenção ao resto do filme, mas inegavelmente Todd e Joaquin captaram o espírito do palhaço Príncipe do Crime e de Gotham e dão ao cinema um dos melhores filmes do gênero de super-herói, sem precisar de super efeitos especiais ou cair no erro de transformar um vilão em um herói ou anti-herói.
Nota: 9/10.